Dia desses, andando por entre as arborizadas alamedas da Unisinos, conversávamos Leonel Rocha, Vicente Barreto e eu sobre a crescente ascensão da fragmentação do saber, convertido cada vez mais em pedaços de conhecimento. E Vicente recitava, magnificamente, T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que se perdeu no saber; onde está o saber que se perdeu na informação?”. Com efeito. Tem razão. E o Direito parece ser o lócus privilegiado desse “mundo que não muda”, dessa cultura prét-à-porter à “disposição” como “secos, molhados e miudezas em geral” (os mais jovens não se lembram dos antigos armazéns). É neste ponto que o Direito é invadido pela liquidez da pós-modernidade (com todos os problemas que esse conceito acarreta). E um dos instrumentos que liquidificam o Direito é a internet. É inegável que a internet alterou as nossas vidas. Poucos, muito poucos, conseguem viver sem ela. Mas ela nos fornece apenas porções de sentido. Migalhas. Não mais do que isto.
Vivemos em um tempo em que, cada vez mais, somos movidos por “conceitos sem coisas”. Frases (enunciados) sem contexto. E tentativas de esmagar o mundo e colocá-lo “dentro dos conceitos”... O Google é um bom exemplo desta novilíngua, desse “mundo-que-parece-querer-(sobre)viver-sem-contextos”. Se você colocar no Google “Cataratas do Iguaçu”, ele vai ter dar “n” informações do tipo: “opero cataratas em clínicas de olhos em Foz do Iguaçu”; se você quiser saber sobre “testemunhas”, vai aparecer, como resultado, testemunhas de Jeová, testemunhas da nova ressurreição etc... Provavelmente nada do que você queria. Claro que deve haver modos de aprimorar a pesquisa. Mas não é disso que se trata. Quero apenas dizer que nossa vida — e a cotidianidade do Direito — acabam sendo uma sucessão de conceitos sem coisas, onde os contextos importam cada vez menos. O Direito, especialmente, se torna acrônico e atópico.
Wittgenstein sabia disso. Por isso, rompeu com o que escrevera no Tratactus. Abandonou a isomorfia (articulação interna do mundo e a linguagem — relação entre nomes e objetos nomeados). Agora, será o contexto de uso que dará sentido ao enunciado. Nos anos 1980, muito aprendi com a filosofia da linguagem ordinária. E, com isso, nas brechas da institucionalidade, fazíamos teoria crítica. Se, de um lado, Fr. Müller nos mostrava que texto e norma eram (e são) coisas diferentes, nós, linguisticamente, usávamos o contexto de uso. Brincávamos com o exemplo de uma lei que proibia o uso de topless na praia... Na praia de Ipanema, o enunciado tinha um sentido; já na praia do Pinho, onde se praticava o nudismo, o sentido era absolutamente inverso. Com isso, jogávamos os sentidos para a faticidade. Nem quero falar aqui do que representou aquilo que podemos denominar de giro ontológico-linguístico, a partir de Heidegger (filosofia hermenêutica) e Gadamer (hermenêutica filosófica). Essa foi a minha fase posterior, pós-analítica. Mas isso fica para outra ocasião.
Sigo. Dia destes, fui testar o Google, para saber o quanto ele (não) “recepcionou” os giros linguísticos... (sarcasmo!). Procurei saber se a famosa “ponderação” — tão propalada e repetida ad nauseam nos quatro quantos do país — era princípio ou regra (já vi questão de concurso dizendo que era princípio). Coloquei entre aspas “princípio da ponderação” e “regra da ponderação”. Resultado: 37.700 incidências dando a ponderação como princípio e 1.390 como regra. Se o aluno (considerando, de barato, que os professores fiquem fora dessa querela) for preguiçoso e, em vez de ler a fonte (Alexy), for ao Google, vai pagar o maior mico. Ponderação não é princípio. Ponderação é um modo de resolver colisão de princípios. Como tudo em Alexy é aplicado por subsunção, o “produto” final da resolução dessa colisão é uma regra adstrita (regra de direito fundamental), que será aplicada para resolver o caso concreto (e os próximos similares).
Viram como é perigoso o Google? Viram como é perigoso trabalhar com conceitos “sem coisas”? Viram como apostar na maioria nem sempre é que dá resultado? Qualquer néscio pode alimentar o Google. Qualquer imbecil pode colocar coisas na Internet. Dia desses, li uma frase em um banheiro de Buenos Aires que traduz muito bem essa questão das maiorias: “coman mierda; mil millones de moscas no pueden estar equivocadas”. Captaram? Por isso, não gosto de maiorias. Gosto da Constituição. Gosto da Constituição porque ela é um remédio contra maiorias.[1] E eu sou anterior à Constituição. Fui recepcionado por ela. Sou absolutamente constitucional. Com efeito ex tunc! Sem modulação de efeitos! Não cabe ADIN contra mim.
Informação não é saber. Conceitos sem coisas servem para esconder as “coisas”. Elas “nadificam”. O Google “nadifica” o ser das coisas. “Nadificar”... Do nada, nada fica. A informação “nadifica” e o saber “nadifica” esse nada! Com isso, ele pode ex-surgir. Manifestar-se como fenômeno. Phaenomenon. Por isso, T.S. Eliot estava certo. Parcela considerável dos livros de Direito cada vez mais está preocupada em oferecer informações. Apenas informações. Restos de sentido. E contentam-se com isso. Mas não se atrevem a ofertar o saber. Não arriscam a reflexão. Constrói-se, assim, um mundo de mentira. E ficções. Os que escrevem fingem que ensinam e os que compram fingem que aprendem. Resultado: isso que está aí. Hoje já estão vendendo informação em coletâneas plastificadas, que somente são úteis para quem as quiser ler durante o banho. Ou seja, não bastassem os compêndios que pretendem, já no título, simplificar e facilitar a compreensão (sic) do Direito, agora há “socorros” jurídicos plastificados. Há para todos os (des)gostos. Permito-me descrever apenas parte do conteúdo de um deles (sobre Hermenêutica), no qual nos é dito que a filosofia reinante no liberalismo, apresentado como “vigorante no século XVII” (sic), era o “absolutismo de Schleiermacher”... (sic). Mais: o utente é alertado para o fato de que “o STF retira a eficácia da norma (controle difuso) e remete ao Senado para que este retire a validade da lei”... (sic). Uau! E, digo eu: trata-se, efetivamente, de uma importante “dica” acerca da diferença entre vigência, validade e eficácia, contanto que o “consumidor” não a siga, para que não responda de forma equivocada eventual questão em concurso público...! De todo modo, há uma esperança: na parte em que o resumo trata das antinomias no Código Civil de 2002, os autores assinalam que, se alguma norma civil confrontar com a Constituição, “por certo prevalecerá o texto constitucional”. Mas por que a alocução “por certo”? Deixemos assim. Poderia ser pior...!
Esse imaginário do conhecimento fast food avança dia a dia. Wall Mart. Já li coisas em alguns livros usados na graduação que parecem ter sido escritos pelo Homer Simpson. Há um processo de “periguetização” em marcha. Parece que há uma disputa para ver quem vende mais facilidades aos incautos alunos — na maioria, pretendentes a uma carreira do Estado. Seria interessante fazermos um ranking para saber quem escreve de forma mais simplificada e mais néscia. Quem diria coisas mais óbvias? Tenho alguns indicativos, como “coisa alheia no furto é aquela que não pertence à pessoa”; “agressão atual é aquela que está acontecendo”; “os crimes comuns são os descritos no Direito Penal comum; especiais, os descritos no Direito Penal especial”; “crimes instantâneos são os que se completam num só momento”; “chave falsa é um instrumento para abrir fechaduras”; “causa superveniente é aquela que ocorre após”; “a preguiça e o desleixo excluem o dolo do crime de prevaricação”, e assim por diante.
E, cada vez mais, o Direito vem imitando a linguagem da TV. Dias desses, vi um programa de esportes na TV. Tratava de um time de futebol do interior. O repórter, como qualquer do seu meio, parece não saber apresentar a notícia sem fazer “metáfora”, alguma “gracinha” ou usar linguagem em duplo sentido. Muito engraçado. Não aguento. Atiro-me ao chão. Farfalho. Eles são pândegos. Galhofeiros (estou sendo sarcástico, é claro). Então o repórter queria dizer que o time X disputaria o campeonato a galope. E o que ele mostrou? O técnico do time montado... em um cavalo. E um galope. Uau. Que metáfora... Mas, pergunto: se é metáfora, por que, para mostrá-la, é necessário ser isomórfico, isto é, “colar” palavras e coisas? Explicando melhor: uma metáfora serve para explicar coisas que as pessoas poderiam não entender... Pensem na Bíblia, rica em metáforas, metonímias... Agora, se para “metaforizar” é preciso “mostrar” a “própria” metáfora, ou seja, “demonstrá-la”, já não se está mais em face de uma metáfora. Imaginem o repórter contando a Bíblia: “então Jesus contou a parábola do filho pródigo...” E a imagem mostra um filho, andrajoso, voltando para os braços do pai... Imagem é tudo. Por isso, aos poucos, os professores parecem que já não sabem dar aulas sem o “pauerpoint”... É um sintoma disso. Tem que mostrar letrinha, figurinhas... E leem para os alunos o que está na pantalla. Na aula de Direito Constitucional, quando falam em poder constituinte, tem que mostrar a foto do parlamento. Claro. Os alunos pode(ria)m pensar que poder constituinte pode(ria) estar ligado a um estádio de futebol... Afinal, Romário não é deputado?
Incrivelmente, a TV criou um “método” pelo qual o telespectador é tomado por débil mental (qualquer semelhança com o ensino jurídico e os concursos públicos e suas infames “pegadinhas” não é mera coincidência). Por isso, como diz Galeano, pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm liberdade senão para escolher entre um e outro canal de TV. E eu acrescento: pobres dos juristas, especialmente os estudantes, que não têm liberdade senão a de escolher entre um manual e outro... Nesse imaginário, as pessoas não pensam. Tem-se que “pensar por elas”. Por isso, a “ideia” deve vir “pronta”. Para falar da enchente, o repórter tem que ficar com água pelo pescoço. O trigo está subindo de preço... Onde está o repórter? No meio de um trigal, é claro! (Trigo igual a trigal... isomorfia... colando o “relé”, como se diz na minha terra!). No Direito, o aluno não tem que saber a história do Estado Moderno, a descontinuidade entre a Forma Estatal Medieval e o Absolutismo... Não. Basta ele saber um drops, que cabe em uma mensagem de twitter. Por isso, ao invés de ler Schleiermacher, o aluno lê a publicação plastificada e aprende... nada (e erra até o século em que o Friedrich S. viveu). Por que ler a Teoria Pura do Direito se é possível ler o resumo dela em sete linhas que um determinado manual faz? Por que estudar a fundo o que seja um princípio se o mais fácil é repetir o mantra “princípios são valores”... E, depois, mais fácil ainda é sair repetindo “princípios” como o da felicidade, da afetividade, da eventual ausência do plenário, da rotatividade... Claro: em um país em que “judicializaram o amor”, o que mais é preciso fazer?
Imagem é tudo. Um conjunto de informações encobre a necessidade do saber... Pergunto: ainda há saída? O pior é que nem podemos dizer que alguns autores de plastificações, compêndios simplificadores e membros de bancas de concursos-que-gostam-de-fazer-pegadinhas deveriam voltar a estudar. Pode ser crime (lembremos o caso do júri Lindemberg em SP; minha dúvida é se caberia exceção da verdade...). PS: foi uma ironia!
Quando lemos alguns livros que querem trazer informações para os estudantes, vemos coisas incríveis, como que a repetir os positivismos do século XIX. Alguns “ensinam” o método de Savigny, sem qualquer contexto. E falam sobre Savigny como se fossem íntimos. Sobre a Escola Histórica falam como se esta fosse um conceito sem coisa... Chegam a reificar o conceito. Até mesmo na Suprema Corte ainda é possível ler frases que bem poderiam estar na boca dos exegetas franceses ou dos pandectistas alemães. Como se palavras e coisas fossem coisas “coladas”. E como se a lei “carregasse” o Direito (mas não esqueçamos do lado B disso tudo...: Angelo I e Angelo II, dos quais tratei em um texto anterior desta coluna, no É possível fazer direito sem interpretar?).
Ora, o que nos coloca no mundo é a metáfora. Entre o significante e o significado se faz uma barra (que pode ser chamada de metáfora). Lembremos, aqui, de Saussure e Lacan — para dizer o mínimo, sem sofisticar a questão. Se eu digo que tenho uma bomba, você não precisa se atirar no chão. Bomba não é “bomba” (“em si”). Trago comigo apenas uma notícia bombástica, como, por exemplo, que um determinado livro de informação de baixa densidade gnosiológica já vendeu mais de 300.000 exemplares... Não é uma “bomba”? Dá para perceber? As palavras não “carregam” a essência das coisas. No Nilo não está a água do rio Nilo. (Fosse na TV, o repórter, ao dizer essa frase, estaria mostrando... o rio Nilo; fosse na Globo, lá estaria Zeca Camargo em um barco, para mostrar a água do Nilo).
Não reflita; não pense; alguém “pensa por você”. Não estude. Não leia nada que tenha mais de 140 caracteres. Não leia parágrafos longos. Seja relativista. Diga que “cada um pode ter a sua opinião sobre qualquer coisa”. Sustente que “gosto não se discute”. E que nada é verdadeiro (inclusive a sua frase!). Você pode “provar” que Michel Teló é tão bom quanto Chico Buarque... E, fundamentalmente, afaste-se de livros complicados. Descomplique a vida, o pá! Não queira saber o que Dworkin fala sobre os princípios... Isso pode ser explicado em cinco linhas... Precisa para o quê e para quê, se depois que você se tornar uma autoridade, você é que “fará as leis”? Se você é juiz, despache como quiser; o idiota do advogado que encontre o modo de opor embargos; depois, despache dizendo “nada há a esclarecer”... Ele que entre com um agravo, que, obviamente, será transformado em “retido” (e, às vezes, nem isso!)... Falta um centavo no preparo? Livre-se do recurso! Negue-o! E todos cumprirão a meta do CNJ. Efetividades quantitativas. Eis o mote. Eis a pós-modernidade. Eis a imagem da Justiça. E imagem é tudo.
Retorno. Desde os sofistas que sabemos que palavras e coisas não estão “coladas”. Na palavra “rosa” não está o perfume da flor. A palavra estupro não “carrega” a essência de “estuprez”. Antígona entendeu bem isso. Seu direito não cabia na lei de Creonte! Infelizmente, o Direito (ensino e prática cotidiana), assim como a Televisão, ingressam perigosamente nessa “isomorfização”. A TV Globo tentou ensinar filosofia no Fantástico. E a dublê de repórter-filósofa, para ensinar o Mito da Caverna, teve que entrar... onde? Em uma caverna, é claro. É demais. Imagem é tudo. Depois ela subiu em um caminhão em movimento, para ensinar... o quê? O movimento da tese heraclitiana. Fico pensando como a filósofa mostraria a Navalha de Ockhan... Ela, com uma navalha, fazendo a barba de alguém? Que tal? E como seria a “imagem” (sic) do Cogito? Um ator interpretando Descartes, tomando cerveja em Ulm, na Alemanha? Ou ainda: de que modo seria uma reportagem sobre o bunga-bunga do Berlusconi? Vou estocar comida. E palavras. Podem vir a faltar, no futuro.
Estamos condenados a interpretar. Quando a TV insiste em “colar” palavra e coisas (imagens e palavras das quais a imagem fala), está negando a inexorabilidade da interpretação. E o Direito não é diferente. Não há uma imanência entre palavras e coisas. Sempre estamos procurando fazer pontes para saltar por sobre essa cesura. Nessa intensa procura, há algo que é inacessível e isto parece incontornável (aqui parafraseio Heidegger). Ou algo que é incontornável e que, por isto, inacessível. Conteudística ou procedimentalmente, é essa incerteza que, consciente ou inconscientemente, move-nos em direção a essa longa travessia. E essa travessia somente é possível na e pela linguagem. Afinal, como bem disse Heidegger, “Die Sprache ist das Haus des Seins; in das Haus wohnt der Mann” (a linguagem é a casa do ser; nessa casa mora o homem). Não há um objeto do outro lado do abismo gnosiológico que nos “separa” das “coisas”. E tampouco há um sujeito — assujeitante — capaz de fazê-lo.
Por isso — e permito-me sofisticar um pouco a coluna, até para sairmos desse imaginário pequeno gnosiológico que domina as práticas cotidianas e o ensino jurídico —, Stephan Georg é definitivo, ao bradar: “kein Ding sei, wo das Wort gebricht”. Que nenhuma coisa seja onde fracassa a palavra, ele diz. Onde falta a palavra, nenhuma coisa! A coisa é o que tem a necessidade da palavra para ser o que é. E é Hilde Domin que encerra o butim das palavras: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort”. Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra...! Mas, acrescento eu, depois se separaram. Daí o trabalho que temos para des-velar esse mistério que existe desde a aurora da civilização. Talvez fazendo uma caminhada antimetafísica: diferenciando (e não cindindo ou dualizando) texto e norma, palavras e coisas, fato e Direito...
Talvez tenhamos recebido o castigo de Sísifo; rolamos a pedra até o limite do logos apofântico e imediatamente fomos jogados de volta à nossa condição de possibilidade: o logos hermenêutico. Eis o castigo ou a glória: a de estarmos condenados a interpretar! Se um texto legal conseguisse abarcar todas as hipóteses de aplicação, seria uma lei perfeita. No fundo, é como se conseguíssemos fazer um mapa que se configurasse perfeitamente com o globo terrestre. Só que já não seria mais um mapa...! E isso seria apenas informação. Não seria um saber. Seria a “própria coisa”. E se o mundo não precisasse de interpretações, seríamos deuses... E isso não teria graça nenhuma.
Encerro, porque já passei de 140 caracteres... Já na biblioteca, atravessadas duas alamedas, marcamos, Vicente, Leonel e eu, novo encontro para discutir as condições de possibilidade para romper com essa denúncia de T.S. Eliot. É um trabalho árduo. Mas não nos assusta. Nasci no meio do mato. Literalmente. Na Várzea do Agudo, lugarejo no interior do interior, onde o mato carece de fecho, como em Grandes Sertões. Parido de parteira. Como a linguagem surge na falta (Lacan), expedito, fui me adiantando... E estocando palavras. E já saí agarrado nelas, catando letrinhas. Desde cedinho. Sim, o mundo está cheio delas: as palavras. Com elas não me assusto. Se antes catava palavras, hoje elas correm atrás de mim, parecido com o que diz o meu poeta preferido Manoel de Barros. Gostava de brincar com elas, as palavras. Meus pais apostavam que, por ficar palavreando o tempo todo, daria-me bem em lides forenses. Sim, palavra é pá-que-lavra, como brinco nas diversas edições do meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Do mesmo modo que Constituição é algo que “constitui-a-ação”. Eu “constituo-a-ação”... Gosto de dizer isto. Por isso acredito tanto nela. E fico palavreando com o mundo. Minha profissão, na verdade, sempre foi a mesma de meus pais, que nunca estudaram. Sua ferramenta era a enxada. E a pá. Com ela lavravam a terra. Com o que me sustentaram. A minha ferramenta é também a pá. Sim, a pá-que-lavra. Palavra. Lavra sulcos para plantar sementes nas imaginações. Sementes de sentido. Pequenas colheitas já me bastam. Saciam-me. De saber. E não de informação! Por aqui se diz “churrasco e bom chimarrão”... McDonald’s, não!
[1] Não se automedique lendo (tomando) placebos... Persistindo os sintomas, leia a Constituição. Este medicamento não é recomendado para casos de estultice.
Vivemos em um tempo em que, cada vez mais, somos movidos por “conceitos sem coisas”. Frases (enunciados) sem contexto. E tentativas de esmagar o mundo e colocá-lo “dentro dos conceitos”... O Google é um bom exemplo desta novilíngua, desse “mundo-que-parece-querer-(sobre)viver-sem-contextos”. Se você colocar no Google “Cataratas do Iguaçu”, ele vai ter dar “n” informações do tipo: “opero cataratas em clínicas de olhos em Foz do Iguaçu”; se você quiser saber sobre “testemunhas”, vai aparecer, como resultado, testemunhas de Jeová, testemunhas da nova ressurreição etc... Provavelmente nada do que você queria. Claro que deve haver modos de aprimorar a pesquisa. Mas não é disso que se trata. Quero apenas dizer que nossa vida — e a cotidianidade do Direito — acabam sendo uma sucessão de conceitos sem coisas, onde os contextos importam cada vez menos. O Direito, especialmente, se torna acrônico e atópico.
Wittgenstein sabia disso. Por isso, rompeu com o que escrevera no Tratactus. Abandonou a isomorfia (articulação interna do mundo e a linguagem — relação entre nomes e objetos nomeados). Agora, será o contexto de uso que dará sentido ao enunciado. Nos anos 1980, muito aprendi com a filosofia da linguagem ordinária. E, com isso, nas brechas da institucionalidade, fazíamos teoria crítica. Se, de um lado, Fr. Müller nos mostrava que texto e norma eram (e são) coisas diferentes, nós, linguisticamente, usávamos o contexto de uso. Brincávamos com o exemplo de uma lei que proibia o uso de topless na praia... Na praia de Ipanema, o enunciado tinha um sentido; já na praia do Pinho, onde se praticava o nudismo, o sentido era absolutamente inverso. Com isso, jogávamos os sentidos para a faticidade. Nem quero falar aqui do que representou aquilo que podemos denominar de giro ontológico-linguístico, a partir de Heidegger (filosofia hermenêutica) e Gadamer (hermenêutica filosófica). Essa foi a minha fase posterior, pós-analítica. Mas isso fica para outra ocasião.
Sigo. Dia destes, fui testar o Google, para saber o quanto ele (não) “recepcionou” os giros linguísticos... (sarcasmo!). Procurei saber se a famosa “ponderação” — tão propalada e repetida ad nauseam nos quatro quantos do país — era princípio ou regra (já vi questão de concurso dizendo que era princípio). Coloquei entre aspas “princípio da ponderação” e “regra da ponderação”. Resultado: 37.700 incidências dando a ponderação como princípio e 1.390 como regra. Se o aluno (considerando, de barato, que os professores fiquem fora dessa querela) for preguiçoso e, em vez de ler a fonte (Alexy), for ao Google, vai pagar o maior mico. Ponderação não é princípio. Ponderação é um modo de resolver colisão de princípios. Como tudo em Alexy é aplicado por subsunção, o “produto” final da resolução dessa colisão é uma regra adstrita (regra de direito fundamental), que será aplicada para resolver o caso concreto (e os próximos similares).
Viram como é perigoso o Google? Viram como é perigoso trabalhar com conceitos “sem coisas”? Viram como apostar na maioria nem sempre é que dá resultado? Qualquer néscio pode alimentar o Google. Qualquer imbecil pode colocar coisas na Internet. Dia desses, li uma frase em um banheiro de Buenos Aires que traduz muito bem essa questão das maiorias: “coman mierda; mil millones de moscas no pueden estar equivocadas”. Captaram? Por isso, não gosto de maiorias. Gosto da Constituição. Gosto da Constituição porque ela é um remédio contra maiorias.[1] E eu sou anterior à Constituição. Fui recepcionado por ela. Sou absolutamente constitucional. Com efeito ex tunc! Sem modulação de efeitos! Não cabe ADIN contra mim.
Informação não é saber. Conceitos sem coisas servem para esconder as “coisas”. Elas “nadificam”. O Google “nadifica” o ser das coisas. “Nadificar”... Do nada, nada fica. A informação “nadifica” e o saber “nadifica” esse nada! Com isso, ele pode ex-surgir. Manifestar-se como fenômeno. Phaenomenon. Por isso, T.S. Eliot estava certo. Parcela considerável dos livros de Direito cada vez mais está preocupada em oferecer informações. Apenas informações. Restos de sentido. E contentam-se com isso. Mas não se atrevem a ofertar o saber. Não arriscam a reflexão. Constrói-se, assim, um mundo de mentira. E ficções. Os que escrevem fingem que ensinam e os que compram fingem que aprendem. Resultado: isso que está aí. Hoje já estão vendendo informação em coletâneas plastificadas, que somente são úteis para quem as quiser ler durante o banho. Ou seja, não bastassem os compêndios que pretendem, já no título, simplificar e facilitar a compreensão (sic) do Direito, agora há “socorros” jurídicos plastificados. Há para todos os (des)gostos. Permito-me descrever apenas parte do conteúdo de um deles (sobre Hermenêutica), no qual nos é dito que a filosofia reinante no liberalismo, apresentado como “vigorante no século XVII” (sic), era o “absolutismo de Schleiermacher”... (sic). Mais: o utente é alertado para o fato de que “o STF retira a eficácia da norma (controle difuso) e remete ao Senado para que este retire a validade da lei”... (sic). Uau! E, digo eu: trata-se, efetivamente, de uma importante “dica” acerca da diferença entre vigência, validade e eficácia, contanto que o “consumidor” não a siga, para que não responda de forma equivocada eventual questão em concurso público...! De todo modo, há uma esperança: na parte em que o resumo trata das antinomias no Código Civil de 2002, os autores assinalam que, se alguma norma civil confrontar com a Constituição, “por certo prevalecerá o texto constitucional”. Mas por que a alocução “por certo”? Deixemos assim. Poderia ser pior...!
Esse imaginário do conhecimento fast food avança dia a dia. Wall Mart. Já li coisas em alguns livros usados na graduação que parecem ter sido escritos pelo Homer Simpson. Há um processo de “periguetização” em marcha. Parece que há uma disputa para ver quem vende mais facilidades aos incautos alunos — na maioria, pretendentes a uma carreira do Estado. Seria interessante fazermos um ranking para saber quem escreve de forma mais simplificada e mais néscia. Quem diria coisas mais óbvias? Tenho alguns indicativos, como “coisa alheia no furto é aquela que não pertence à pessoa”; “agressão atual é aquela que está acontecendo”; “os crimes comuns são os descritos no Direito Penal comum; especiais, os descritos no Direito Penal especial”; “crimes instantâneos são os que se completam num só momento”; “chave falsa é um instrumento para abrir fechaduras”; “causa superveniente é aquela que ocorre após”; “a preguiça e o desleixo excluem o dolo do crime de prevaricação”, e assim por diante.
E, cada vez mais, o Direito vem imitando a linguagem da TV. Dias desses, vi um programa de esportes na TV. Tratava de um time de futebol do interior. O repórter, como qualquer do seu meio, parece não saber apresentar a notícia sem fazer “metáfora”, alguma “gracinha” ou usar linguagem em duplo sentido. Muito engraçado. Não aguento. Atiro-me ao chão. Farfalho. Eles são pândegos. Galhofeiros (estou sendo sarcástico, é claro). Então o repórter queria dizer que o time X disputaria o campeonato a galope. E o que ele mostrou? O técnico do time montado... em um cavalo. E um galope. Uau. Que metáfora... Mas, pergunto: se é metáfora, por que, para mostrá-la, é necessário ser isomórfico, isto é, “colar” palavras e coisas? Explicando melhor: uma metáfora serve para explicar coisas que as pessoas poderiam não entender... Pensem na Bíblia, rica em metáforas, metonímias... Agora, se para “metaforizar” é preciso “mostrar” a “própria” metáfora, ou seja, “demonstrá-la”, já não se está mais em face de uma metáfora. Imaginem o repórter contando a Bíblia: “então Jesus contou a parábola do filho pródigo...” E a imagem mostra um filho, andrajoso, voltando para os braços do pai... Imagem é tudo. Por isso, aos poucos, os professores parecem que já não sabem dar aulas sem o “pauerpoint”... É um sintoma disso. Tem que mostrar letrinha, figurinhas... E leem para os alunos o que está na pantalla. Na aula de Direito Constitucional, quando falam em poder constituinte, tem que mostrar a foto do parlamento. Claro. Os alunos pode(ria)m pensar que poder constituinte pode(ria) estar ligado a um estádio de futebol... Afinal, Romário não é deputado?
Incrivelmente, a TV criou um “método” pelo qual o telespectador é tomado por débil mental (qualquer semelhança com o ensino jurídico e os concursos públicos e suas infames “pegadinhas” não é mera coincidência). Por isso, como diz Galeano, pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm liberdade senão para escolher entre um e outro canal de TV. E eu acrescento: pobres dos juristas, especialmente os estudantes, que não têm liberdade senão a de escolher entre um manual e outro... Nesse imaginário, as pessoas não pensam. Tem-se que “pensar por elas”. Por isso, a “ideia” deve vir “pronta”. Para falar da enchente, o repórter tem que ficar com água pelo pescoço. O trigo está subindo de preço... Onde está o repórter? No meio de um trigal, é claro! (Trigo igual a trigal... isomorfia... colando o “relé”, como se diz na minha terra!). No Direito, o aluno não tem que saber a história do Estado Moderno, a descontinuidade entre a Forma Estatal Medieval e o Absolutismo... Não. Basta ele saber um drops, que cabe em uma mensagem de twitter. Por isso, ao invés de ler Schleiermacher, o aluno lê a publicação plastificada e aprende... nada (e erra até o século em que o Friedrich S. viveu). Por que ler a Teoria Pura do Direito se é possível ler o resumo dela em sete linhas que um determinado manual faz? Por que estudar a fundo o que seja um princípio se o mais fácil é repetir o mantra “princípios são valores”... E, depois, mais fácil ainda é sair repetindo “princípios” como o da felicidade, da afetividade, da eventual ausência do plenário, da rotatividade... Claro: em um país em que “judicializaram o amor”, o que mais é preciso fazer?
Imagem é tudo. Um conjunto de informações encobre a necessidade do saber... Pergunto: ainda há saída? O pior é que nem podemos dizer que alguns autores de plastificações, compêndios simplificadores e membros de bancas de concursos-que-gostam-de-fazer-pegadinhas deveriam voltar a estudar. Pode ser crime (lembremos o caso do júri Lindemberg em SP; minha dúvida é se caberia exceção da verdade...). PS: foi uma ironia!
Quando lemos alguns livros que querem trazer informações para os estudantes, vemos coisas incríveis, como que a repetir os positivismos do século XIX. Alguns “ensinam” o método de Savigny, sem qualquer contexto. E falam sobre Savigny como se fossem íntimos. Sobre a Escola Histórica falam como se esta fosse um conceito sem coisa... Chegam a reificar o conceito. Até mesmo na Suprema Corte ainda é possível ler frases que bem poderiam estar na boca dos exegetas franceses ou dos pandectistas alemães. Como se palavras e coisas fossem coisas “coladas”. E como se a lei “carregasse” o Direito (mas não esqueçamos do lado B disso tudo...: Angelo I e Angelo II, dos quais tratei em um texto anterior desta coluna, no É possível fazer direito sem interpretar?).
Ora, o que nos coloca no mundo é a metáfora. Entre o significante e o significado se faz uma barra (que pode ser chamada de metáfora). Lembremos, aqui, de Saussure e Lacan — para dizer o mínimo, sem sofisticar a questão. Se eu digo que tenho uma bomba, você não precisa se atirar no chão. Bomba não é “bomba” (“em si”). Trago comigo apenas uma notícia bombástica, como, por exemplo, que um determinado livro de informação de baixa densidade gnosiológica já vendeu mais de 300.000 exemplares... Não é uma “bomba”? Dá para perceber? As palavras não “carregam” a essência das coisas. No Nilo não está a água do rio Nilo. (Fosse na TV, o repórter, ao dizer essa frase, estaria mostrando... o rio Nilo; fosse na Globo, lá estaria Zeca Camargo em um barco, para mostrar a água do Nilo).
Não reflita; não pense; alguém “pensa por você”. Não estude. Não leia nada que tenha mais de 140 caracteres. Não leia parágrafos longos. Seja relativista. Diga que “cada um pode ter a sua opinião sobre qualquer coisa”. Sustente que “gosto não se discute”. E que nada é verdadeiro (inclusive a sua frase!). Você pode “provar” que Michel Teló é tão bom quanto Chico Buarque... E, fundamentalmente, afaste-se de livros complicados. Descomplique a vida, o pá! Não queira saber o que Dworkin fala sobre os princípios... Isso pode ser explicado em cinco linhas... Precisa para o quê e para quê, se depois que você se tornar uma autoridade, você é que “fará as leis”? Se você é juiz, despache como quiser; o idiota do advogado que encontre o modo de opor embargos; depois, despache dizendo “nada há a esclarecer”... Ele que entre com um agravo, que, obviamente, será transformado em “retido” (e, às vezes, nem isso!)... Falta um centavo no preparo? Livre-se do recurso! Negue-o! E todos cumprirão a meta do CNJ. Efetividades quantitativas. Eis o mote. Eis a pós-modernidade. Eis a imagem da Justiça. E imagem é tudo.
Retorno. Desde os sofistas que sabemos que palavras e coisas não estão “coladas”. Na palavra “rosa” não está o perfume da flor. A palavra estupro não “carrega” a essência de “estuprez”. Antígona entendeu bem isso. Seu direito não cabia na lei de Creonte! Infelizmente, o Direito (ensino e prática cotidiana), assim como a Televisão, ingressam perigosamente nessa “isomorfização”. A TV Globo tentou ensinar filosofia no Fantástico. E a dublê de repórter-filósofa, para ensinar o Mito da Caverna, teve que entrar... onde? Em uma caverna, é claro. É demais. Imagem é tudo. Depois ela subiu em um caminhão em movimento, para ensinar... o quê? O movimento da tese heraclitiana. Fico pensando como a filósofa mostraria a Navalha de Ockhan... Ela, com uma navalha, fazendo a barba de alguém? Que tal? E como seria a “imagem” (sic) do Cogito? Um ator interpretando Descartes, tomando cerveja em Ulm, na Alemanha? Ou ainda: de que modo seria uma reportagem sobre o bunga-bunga do Berlusconi? Vou estocar comida. E palavras. Podem vir a faltar, no futuro.
Estamos condenados a interpretar. Quando a TV insiste em “colar” palavra e coisas (imagens e palavras das quais a imagem fala), está negando a inexorabilidade da interpretação. E o Direito não é diferente. Não há uma imanência entre palavras e coisas. Sempre estamos procurando fazer pontes para saltar por sobre essa cesura. Nessa intensa procura, há algo que é inacessível e isto parece incontornável (aqui parafraseio Heidegger). Ou algo que é incontornável e que, por isto, inacessível. Conteudística ou procedimentalmente, é essa incerteza que, consciente ou inconscientemente, move-nos em direção a essa longa travessia. E essa travessia somente é possível na e pela linguagem. Afinal, como bem disse Heidegger, “Die Sprache ist das Haus des Seins; in das Haus wohnt der Mann” (a linguagem é a casa do ser; nessa casa mora o homem). Não há um objeto do outro lado do abismo gnosiológico que nos “separa” das “coisas”. E tampouco há um sujeito — assujeitante — capaz de fazê-lo.
Por isso — e permito-me sofisticar um pouco a coluna, até para sairmos desse imaginário pequeno gnosiológico que domina as práticas cotidianas e o ensino jurídico —, Stephan Georg é definitivo, ao bradar: “kein Ding sei, wo das Wort gebricht”. Que nenhuma coisa seja onde fracassa a palavra, ele diz. Onde falta a palavra, nenhuma coisa! A coisa é o que tem a necessidade da palavra para ser o que é. E é Hilde Domin que encerra o butim das palavras: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort”. Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra...! Mas, acrescento eu, depois se separaram. Daí o trabalho que temos para des-velar esse mistério que existe desde a aurora da civilização. Talvez fazendo uma caminhada antimetafísica: diferenciando (e não cindindo ou dualizando) texto e norma, palavras e coisas, fato e Direito...
Talvez tenhamos recebido o castigo de Sísifo; rolamos a pedra até o limite do logos apofântico e imediatamente fomos jogados de volta à nossa condição de possibilidade: o logos hermenêutico. Eis o castigo ou a glória: a de estarmos condenados a interpretar! Se um texto legal conseguisse abarcar todas as hipóteses de aplicação, seria uma lei perfeita. No fundo, é como se conseguíssemos fazer um mapa que se configurasse perfeitamente com o globo terrestre. Só que já não seria mais um mapa...! E isso seria apenas informação. Não seria um saber. Seria a “própria coisa”. E se o mundo não precisasse de interpretações, seríamos deuses... E isso não teria graça nenhuma.
Encerro, porque já passei de 140 caracteres... Já na biblioteca, atravessadas duas alamedas, marcamos, Vicente, Leonel e eu, novo encontro para discutir as condições de possibilidade para romper com essa denúncia de T.S. Eliot. É um trabalho árduo. Mas não nos assusta. Nasci no meio do mato. Literalmente. Na Várzea do Agudo, lugarejo no interior do interior, onde o mato carece de fecho, como em Grandes Sertões. Parido de parteira. Como a linguagem surge na falta (Lacan), expedito, fui me adiantando... E estocando palavras. E já saí agarrado nelas, catando letrinhas. Desde cedinho. Sim, o mundo está cheio delas: as palavras. Com elas não me assusto. Se antes catava palavras, hoje elas correm atrás de mim, parecido com o que diz o meu poeta preferido Manoel de Barros. Gostava de brincar com elas, as palavras. Meus pais apostavam que, por ficar palavreando o tempo todo, daria-me bem em lides forenses. Sim, palavra é pá-que-lavra, como brinco nas diversas edições do meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Do mesmo modo que Constituição é algo que “constitui-a-ação”. Eu “constituo-a-ação”... Gosto de dizer isto. Por isso acredito tanto nela. E fico palavreando com o mundo. Minha profissão, na verdade, sempre foi a mesma de meus pais, que nunca estudaram. Sua ferramenta era a enxada. E a pá. Com ela lavravam a terra. Com o que me sustentaram. A minha ferramenta é também a pá. Sim, a pá-que-lavra. Palavra. Lavra sulcos para plantar sementes nas imaginações. Sementes de sentido. Pequenas colheitas já me bastam. Saciam-me. De saber. E não de informação! Por aqui se diz “churrasco e bom chimarrão”... McDonald’s, não!
[1] Não se automedique lendo (tomando) placebos... Persistindo os sintomas, leia a Constituição. Este medicamento não é recomendado para casos de estultice.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2012
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