quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A doença da jurisdição brasileira: um caso de saúde pública

Relatório da saúde abalada

Ainda no século passado, mais exatamente em 1973, o Brasil mereceu um novo Código de Processo civil. Os estudos davam como certa a necessidade de uma legislação processual ágil e adequada ao comportamento dos então cerca de 90 milhões de cidadãos envoltos no “milagre brasileiro” pós-tricampeonato mundial de futebol.
Já àquela época o Legislador encontravam sinais de necessidade de ajustes na vida diária da cidadania jurídica. Foi criado o então Procedimento Sumário (conhecido hoje como Sumaríssimo). Emprestaria, como em verdade em seu início de vida emprestou, celeridade na prestação jurisdicional em determinados tipos de ações e direitos.

Entretanto, a população aumentou, os hábitos modificaram. Esse conjunto acarretou na debilidade da saúde da jurisdição. O maior número de jurisdicionados – uma população crescente em direitos e desejos – deparou-se com uma estrutura processual e física que não mais proporcionavam um tratamento eficaz. Mas, e acima de tudo, um marco foi definitivo para que a saúde pública jurisdicional buscasse novos comportamentos: a Constituição de 1988. Esses sintomas, além de outros, passaram a ser examinados, estudados e novos tratamentos passaram a, gradativamente, serem ministrados.

Diagnóstico encontrado: tratamento pensado

O Legislador de plantão passou a pensar-se médico de um paciente que apresentava sintomas variados. O primeiro diagnóstico mostrava uma jurisdição que não mais atendia as necessidades públicas pós Carta Constitucional de 1988, chamada de Cidadã, por Ulysses Guimarães.

A instituição de direitos individuais e coletivos mais amplos, emprestando garantias decorrentes de direitos humanos mais amplamente divulgados e defendidos acarretou em uma explosão. Tal qual células cancerígenas que se multiplicam causando lesões, o Brasil viveu um aumento vertiginoso de demandas. Por evidente que multiplicou-se proporcionalmente o número de jurisdicionados, o que, somado ao aumento de ações acarretou em um câncer encontrado no órgão vital à manutenção de um Estado Democrático de Direito: o Poder Judiciário.

O diagnóstico foi apresentado de imediato: lentidão da Justiça. À partir do tratamento inaugural, Carta de 88, foram estabelecidas novas medicações. Microalterações processuais depois de 1994, chamemos de medicação pontual, foram introduzidas. Muitas, importantes e que surtiram efeito, tais como o instituto da antecipação dos efeitos da tutela (garantia direta no tratamento de doenças que, se demorada sequencia de atos, poderá levar à morte o direito postulado) e as modificações procedidas nos recursos de Agravo Retido e de Instrumento (possibilitando, em especial o último, seja ministrado de imediato, pelo Tribunal, o remédio necessário).

Após, e apresentando então tratamento mais amplo, adveio a Lei 9099/1995, conhecida como Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Esta, somada ao então já institucionalizado Código de Proteção e Defesa do Consumidor, trouxe garantias de vida especialmente tratada a uma parcela da população. Mas somente a uma parcela, muito embora a maior. Porém, como tratamento de abrangência pública, ministrado de forma igual a todos os necessitados em um país continental, mostrou-se com a necessidade de uso controlado, sob pena de causar males maiores. Ora, aplicação de regras decorrentes da relação de consumo em relações comerciais dela não decorrentes causaria uma overdose que poderia(rá) ser fatal aos direitos tratados.

Mas o corpo do jurisdicionado continuou sentindo dores em outros órgãos. Passados mais de 30 anos continuavam tratando a doença da recuperação de créditos com os mesmos remédios. O livro do Processo de Execução do Código de Processo Civil precisava alterar o tratamento dado. O jurisdicionado credor sofria com o burocrático proceder do processo executivo, que, quando decorrente de sentença judicial ainda exigia um novo processo, o de execução de sentença. Por outro lado, a dor do jurisdicionado devedor, que somente poderia defender o seu direito de não pagar quando e se tivesse patrimônio para garantir a penhora.

O Legislador então buscou medicação moderna e radical. Buscou modificar o tratamento da execução de sentença para fazer cumpri-la. Já o processo de execução de título executivo extrajudicial também teve o ser tratamento modificado, com imposição de medicamentos cujo objetivo é impedir o prolongar da doença. Essa modificação busca que a jurisdição possa tratar os males do jurisdicionado de forma mais enérgica e rápida.

Porém, um sintoma parece não ter sido compreendido pelos médicos legisladores. Um sintoma que leva todo o novo tratamento iniciado a tornar-se ineficaz. Desde 1990 o sintoma vem sendo sentido por todos aqueles que, de uma forma ou outra, decorrente de relações comerciais, de consumo, familiares ou fortuitas, dependem da recuperação de valores: a impenhorabilidade. Enquanto a legislação permitir que dívidas não sejam pagas em nome de amplo direito à dignidade da pessoa humana (mas dignidade apenas do devedor), estaremos diante de um crescimento de células cancerígenas que poderão levar à morte a crença do jurisdicionado no processo de execução. Este sintoma deve ser levado em consideração pelo médico-legislador para o estudo de um tratamento, além de moderno e radical como o empreendido de 2005/2006, seja eficaz.

O tratamento prometido

Vivemos um momento de estudo e busca por um novo tratamento. Agora de modificação total da medicação, do diagnóstico e mesmo da fisioterapia, em alguns casos. Por obra e graça do Senado da República, foi formado um grupo de renome nacional e internacional, para pensar um tratamento eficaz para que o jurisdicionado não mais sofra e a jurisdição se recupere.

O diagnóstico/remédio que se oferece, porém, deve ser bem analisado por todos. Os operadores do Direito e a sociedade jurisdicionada devem pensar em conjunto com os médicos-legisladores os casos de medicação a ser ministrada. Tratar da saúde jurisdicional após diagnosticada a doença, ou seja, em sede de tramitação processual, trata apenas um jurisdicionado já doente. A jurisdição deve merecer o pensar de doença pública. A saúde do jurisdicionado deve ser tratada como saúde pública. Preventivamente.

Por evidente que não se pensa obter uma sociedade na qual o conflito inexista. O ser humano conflita consigo mesmo e com os outros. Não se discute a utopia da vida em paz, assim como jamais teremos um corpo totalmente saudável. Porém, quando podemos tratar do conflito antes que se instale de forma mais áspera, nas barras do poder Judiciário. Assim como podemos medicar o paciente antes de hospitalizá-lo.

E, nesse sentido, salvo melhor juízo, a tratamento ofertado pela comissão nomeada pelo Senado Federal, não obstante a presença de nome como Ministro Luiz Fux, Theresa Arruda Alvin e Adroaldo Furtado Fabrício, dentre outros, talvez merecesse reavaliação. A ação preventiva, na busca da solução alternativa de conflitos deve ser ampliada, e não somente na legislação. O Projeto de Lei 166/2010, apelidado de Novo Código de Processo Civil, foi tímido ao tratar do tema. Apenas 10 artigos fazem referência ao assunto e de forma extremamente genérica e com pouca consistência.
Os méritos das modificações previstas são muitos. Porém pensar em solução dos problemas da jurisdição lenta com alterações nos procedimentos assemelha-se a modificar a cama do hospital como forma de propiciar um melhor tratamento. A medicação deve ser tomada conforme as necessidades. A explosão de demandas derivadas de uma maior consciência de cidadania, das possibilidades trazidas pelos Juizados Especiais e a cada vez mais flexível interpretação do direito à gratuidade judiciária não diminuirão. Crescerão a cada dia e, a cada dia mais ações judiciais serão ajuizadas.

Somente evitando o ajuizamento das ações, já que não podemos evitar os conflitos, é que poderemos ver o futuro novo tratamento dar resultados. Bons resultados.


Theobaldo Spengler Neto

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