quinta-feira, 8 de julho de 2010

Jurisdição e mediação: as diferenças

O texto abaixo é um extrato de meu novo livro " Jurisdição e mediação" e seu tema foi parte das discussão entabulada em sala de aula com a turma de 2009 junto ao Mestrado em Direito da UNISC cujas atividades encerraram-se na semana passada. Fica a saudade dos alunos e a certeza de que o debate foi proveitoso!


Parece dispiciendo apontar as diferenças entre a sistemática processual proposta pelo modelo tradicional de jurisdição e aquela das práticas de ADR, especialmente observadas na mediação. No entanto, algumas devem ser analisadas com especial atenção. Essas características diferenciadoras dizem respeito, dentre outras, à linguagem utilizada pelo mediador, à busca pela verdade e à discussão do tempo enquanto recurso de satisfação da tutela jurisdicional (processualmente falando) e de busca da paz social (quando sua utilização se dá através da mediação).
Nesse sentido, o primeiro pressuposto que se deve levar em consideração é o fato de que o campo da mediação coexiste em separado ao campo do juízo , objetivando que entre ambos haja autonomia . Porém, essa autonomia é relativa e não absoluta: de fato, por um lado é necessário que os sistemas de justiça e de mediação “conversem”, tendo em vista que não são mundos completamente desconexos entre si, mas, por outro lado, é importante que cada um fale a sua linguagem . Falar a sua linguagem significa ter em mente que ao juiz cabe exercitar o poder de “decidir” .
De fato, transformar conflitos inconciliáveis de interesses em permutas reguladas de argumentos racionais entre conflitantes iguais está inscrito na própria existência de um grupo juridicamente “especializado”, dentre os quais se pode citar o juiz, o perito, o advogado e o promotor. Este grupo especializado se encarrega de organizar, segundo formas codificadas, a manifestação pública dos conflitos, substituindo a visão vulgar dos fatos por uma visão científica e dando-lhes tratamento socialmente reconhecido como imparcial e legítimo, uma vez definido segundo regras formais e coerentes. Assim, a representação que descreve um tribunal como um espaço separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo de peritos e o processo, como um procedimento ordenado com vistas à verdade, é uma boa evocação de uma das dimensões do efeito simbólico do ato jurídico como aplicação prática, livre e racional de uma norma universal e cientificamente fundamentada.
Enquanto procedimento que busca a verdade dos fatos, o processo não oferece uma comunicação bilateral uma vez que as relações processuais são todas indiretas, veiculadas à representação dos profissionais e endereçadas a um terceiro dotado de poder de decisão. O processo pesquisa, sempre com detalhamento, as formas mais neutras na aquisição da consciência do fato, desconfiando, de modo muito acentuado, da potencial parcialidade de todos os sujeitos que participam de sua reconstrução histórica. O juiz deve garantir a absoluta serenidade valorativa que coincide com a inexistência de pré-juízos, de modo que qualquer valoração que tenha expresso antes de assumir as vestes de julgador o expõe a uma contaminação irremediável. Conseqüentemente, o processo tende a perder a conotação participativa, assumindo um procedimento de elevado conteúdo técnico, burocrático, e formalista . Porém, a linguagem do juiz, traduzida no processo, é aquela de quem deve decidir quando o conflito não pode ser sanado de outro modo.
Isso se dá porque nem todas as relações são mediáveis . Onde os termos pertencem a planos diversos e falta um espaço físico e geométrico comum, faltará, também, a possibilidade de relação: conseqüentemente, é impossível alcançar a mediação . As relações nascidas nesse/desse espaço comum entre os conflitantes é a diferença característica entre o procedimento de mediação e o processo judiciário uma vez que “lo scambio (il contraddittorio) non si sviluppa tra le ‘parti del processo’ ma tra le ‘parti del fatto’ ”. Significa que, enquanto no processo as partes reagem conforme o papel que lhes foi determinado pelo código ritual do judiciário , no curso da mediação elas participam de uma experiência relacional que as toma como protagonistas diretos e não representados por um advogado. Essa postura proposta pela mediação oferece aos indivíduos um espaço para diferenciar-se através do procedimento de construção e reconstrução de regras e de contextos, sobretudo através de procedimentos de responsabilização .
De fato, o espaço da mediação está, antes de tudo, no meio, entre dois extremos. Coincide com sua relação e com sua existência. Compartilham as distâncias e os avizinhamentos. Antes de ser “meio” era, no mundo antigo, mesotes: espaço e virtude ao mesmo tempo. Era um estar no meio e, então, um assumir o problema, não distante de recusar o idios (do qual idiota), que fecha os indivíduos no egoísmo vulgar do seu ponto de vista privado; privado justamente no sentido de carente de alguma coisa. Indica, sobretudo, um espaço comum, participativo, que pertence também aos extremos entre os quais se define, mesmo os mais antagônicos e conflitantes; virtude distante da abstração de um terzieta e de uma imparcialidade somente imaginárias .
A tão aclamada imparcialidade do mediador deve ser revista levando em consideração que o conflito é, normalmente, a conseqüência de um desequilíbrio, de uma desigualdade. Nesses termos, o mediador tem como função principal o reforço da parte frágil do conflito, reequilibrando, de forma ecológica, a posição dos conflitantes. Assim, se o mediador se arroga poderes de reequilibrar as desigualdades, de reforçar as posições mais frágeis, de conter e redimensionar as pretensões do mais forte, “o requisito da imparcialidade se dissolve no reconhecimento de uma autoridade discricional, se non di un vero e proprio arbitrio” . O risco talvez seja a degeneração da função de mediador quando exercida por pessoa pouco capacitada que desenvolva sua função com prevaricação. No entanto, o verdadeiro antídoto reside no princípio do consenso que liga o mediador às partes e, na falta de atributos jurídicos, se legitima por aqueles que lhes vêm reconhecidos pelas próprias partes.
Essa imparcialidade imaginária acontece quando se esquece que o mediador possui um papel que é estar no meio, compartilhar, e até mesmo “sporcarsi le mani ”. São muito comuns as repetições de que o mediador é imparcial na relação com as partes e é neutro no desenvolvimento da mediação. Com isso, ele se confunde com o juiz, mas sem os seus poderes e as suas prerrogativas; tornando-se um mínimo e, ainda mais, de formato reduzido. É um erro freqüente e quase ritual que faz perder o sentido real da mediação, que é totalmente oposta a esta invocação da qualidade de ser terceiro: o mediador que se coloca como tal deixa de ser mediador e assume uma posição estranha, super partes, incapaz de assumir o litígio como o elemento comum, que é também o meio simbólico a ser transformado e reutilizado para reativar a capacidade comunicativa. Um mediador que faz os interesses de um ou de outro promove a falência da mediação e perde a sua identidade. A mediação é outra; é um ficar inserido entre as partes e não encontrar um espaço neutro e eqüidistante no qual resida a grande utopia do moderno, que é ter a qualidade de terceiro .
Assim, enquanto o juiz é pensado, nos sistemas modernos, como o “nec utrum, nem um, nem outro, nem isto nem aquilo”, justamente neutro, o mediador deve ser “isto e aquilo”, deve perder a neutralidade e perdê-la até o fim . Enquanto as partes litigam e só vêem seu próprio ponto de vista, o mediador pode ver as diferenças comuns aos conflitantes e recomeçar daqui, atuando com o objetivo das partes retomarem a comunicação, exatamente o múnus comum a ambas. O mediador torna-se meio para a pacificação, remédio para o conflito, graças ao estar entre os conflitantes, nem mais acima, nem mais abaixo, mas no seu meio .
Todavia, não obstante o mediador e o juiz possuírem papéis diferenciados, não obstante o processo judicial e o procedimento de mediação portarem características e rituais diversos e autônomos, não se pode ignorar que processo e mediação se combinam em uma relação complexa de formalidade/informalidade que não permite apresentar a mediação como uma simples alternativa à justiça tradicional, nem também como um procedimento que reivindica uma total autonomia, mas como um lugar de exercício da interdisciplinaridade e da interpenetração de diferentes modalidades de regulação social. Assim, a mediação, longe de fazer concorrência ao processo judiciário, contribui para salvar o Direito .
A ritualidade diferenciada entre a mediação e o processo se dá principalmente em duas linhas: a primeira diz respeito ao fato de que o processo sempre trabalha com a lógica de ganhador/perdedor . Num segundo momento, a ritualidade do processo tem por objetivo (além de dizer quem ganha e quem perde a demanda) investigar a “verdade real dos fatos”, enquanto que a mediação pretende restabelecer a comunicação entre os conflitantes, trabalhando com a lógica ganhador/ganhador.
Nesse sentido, o processo, enquanto busca da verdade, produz/reproduz a violência . A verdade não pode ser imposta por uma decisão, tampouco pode ser descoberta pela violência . A procura da verdade, nos termos que a ciência mecanicista coloca, é por si mesma violenta, tornando-se uma forma de manipulação do mundo e dos outros. E não importa que tentemos distinguir entre verdade como correspondência fática e verdade como interpretação, ambas são manipuladas. Ninguém sabe o que vai acontecer. Ninguém pode predizer o real, ele é imprevisível. As verdades, como momentos predizíveis do saber da ciência, são uma ficção, mito destinado a satisfazer nossa criança insatisfeita e os lugares de medo; e com as quais pretendemos dotar de sentido o sem sentido da existência .

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