"Sou juíza que teme precisar da Justiça"
Data: 04.10.10
A ministra Eliana Calmon, destaque da edição do Espaço Vital do dia 29/9 ("É preciso acabar com a juizite"), volta ao centro das atenções dos operadores do Direito, novamente por suas fortes posições e manifestações corajosas e crpiticas ao próprio Poder a que pertence.
Recém empossada como corregedora-geral do CNJ, Eliana Calmon volta à mídia ao dizer que o Judiciário está "100 anos atrasado". Ela espera combater a morosidade do sistema, da qual ela própria se diz vítima.
Ela própria é uma vítima da morosidade do Judiciário brasileiro. Há quatro anos, após a morte de seu pai, espera que a Justiça conclua o inventário. Mas, como ela mesma define, este foi mais um caso que caiu nas "teias do Poder Judiciário".
Por isso, diz que prefere resolver seus problemas sem a intervenção da Justiça. "Eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça", afirma.
Eliana é responsável por corrigir eventuais desvios dos magistrados e trabalhar justamente para que problemas como a morosidade se resolvam. Ela substitui o ministro Gilson Dipp e terá dois anos de mandato.
Dentre os exemplos de morosidade do Judiciário, a ministra cita o julgamento da Lei da Ficha Limpa pelo STF, que terminou empatado na semana passada. "Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário."
A ministra concedeu a seguinte entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.
OESP - Que imagem a senhora tinha do Judiciário antes de chegar à Corregedoria?
Eliana Calmon - Eu sou uma crítica do Poder Judiciário. E seria uma incoerência não vir para a Corregedoria num momento em que a vida me permitiu fazer alguma coisa para combater a burocracia que eu critico. Com dez dias apenas de atividade, estou vendo muito mais do que eu sabia. Eu sabia da disfunção, do atraso do Judiciário. Mas aqui tomei consciência de que não existem culpados específicos. Essa disfunção vem da disfunção estatal.
OESP - Por que isso ocorre?
E.C. - Cada Estado tinha uma Justiça absolutamente independente. Eles se organizavam como queriam. Não havia controle das pessoas que organizavam a Justiça. A partir daí pudemos detectar que tínhamos 27 feudos. Tinham independência como Poder e são geridos por grupos de desembargadores que não se alternam no poder. Essas circunstâncias específicas do Poder Judiciário e que a lei estabeleceu (vitaliciedade e inamovibilidade dos magistrados) para dar maior garantia ao jurisdicionado começou a fazer mal ao próprio Judiciário.
OESP - Quem é prejudicado por isso?
E.C. - Toda essa disfunção deságua nas mãos dos jurisdicionados com o atraso dos processos. Estamos 100 anos atrasados em tudo: nos prédios, nos funcionários, nas práticas de serviço público, na informática - ainda existem magistrados que não usam computador ou usam apenas como máquina de escrever. São essas práticas que levam a essa disfunção. E essa disfunção é de um tamanho inacreditável. Só em São Paulo temos 16 milhões de processos. E isso com um custo Brasil imenso. Quando se entra no Judiciário não se tem expectativa de quando se sai, quanto vai custar o processo.
OESP - Se for possível resolver uma pendência sem precisar da Justiça, a senhora prefere?
E.C. - Com certeza. Hoje, eu sou uma magistrada que teme precisar da Justiça. Eu temo precisar da Justiça.
OESP - Isso é insolúvel?
E.C. - Nada é insolúvel. Eu sou extremamente otimista. Agora, nós não resolveremos o Poder Judiciário com menos de 10 anos. Não resolveremos. Porque todos os controles da sociedade, e que estão nas mãos do Judiciário, estão com problemas.
OESP - Por exemplo?
E.C. - A política carcerária. Nós temos problemas gravíssimos. Isso não é só do Judiciário. É do Executivo também. Pelo fato de o Executivo não realizar a política pública necessária, o juiz vai se desinteressando pelos presos pelos quais é responsável. O juiz virou um assinador de papel. Ele assina a carta de guia, manda o preso para a penitenciária e estamos encerrados. Ele não examina, não conduz, não acompanha.
OESP - Mas não é possível resolver isso mais rapidamente?
E.C. - Eu acho que a Justiça só se resolve a longo prazo. Casos episódicos nós podemos resolver. Eu estou com um pedido para São Paulo de alguém que está há 24 anos na Justiça brigando com o irmão. E depois de ganhar em todas as instâncias, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal, onde houve nada mais nada menos que seis embargos de declaração, recursos para que o processo não saísse de dentro do Supremo. Agora, a parte vencida molhou a mão do juiz para que a execução não se complete. Essa é a realidade.
OESP - Qual é o tamanho da corrupção do Judiciário?
E.C. - Num momento em que se tem um órgão esfacelado do ponto de vista administrativo, de funcionalidade, de eficiência, temos um campo fértil para a corrupção. Começa-se a vender facilidades em razão das dificuldades do sistema. Para julgar um processo, às vezes um funcionário, para ajudar alguém, chega para o juiz e pergunta se ele pode julgar determinado processo. Aí vem um bilhetinho de um colega, eu mesmo faço a toda hora: "Na medida do possível dê um pedido de preferência para um baiano aflito que está querendo ser julgado." Essas coisas começam a acontecer. E quem não tem amigo para fazer um bilhetinho para o juiz?
OESP - E como se acaba com a corrupção?
E.C. - Acaba-se com a corrupção na medida em que se possa chegar às causas dessa corrupção. Parte disso é fruto da intimidade indecente entre o público e o privado, entre a atividade judicante e política e a interferência dos políticos nos tribunais. Só se acaba com a corrupção combatendo as causas, não as consequências. Punir os corruptos é como fazer uma barragem para ele não propagar seu comportamento deletério.
OESP - E as corregedorias dos Estados funcionam a contento para resolver esses problemas?
E.C. - Não. Elas nunca funcionaram a contento. O corregedor local, sozinho, não pode fazer muita coisa. Como dizia Aliomar Baleeiro (ex-deputado e ex-ministro do STF): lobo não come lobo. É difícil para um corregedor começar a se rebelar contra seus colegas.
OESP - Alguns magistrados, agora no Tocantins, estão dando liminares contra a publicação de matérias contra políticos. O que a senhora acha disso?
E.C. - Nós sabemos que a transparência é um dos princípios de toda democracia. A notícia naturalmente é benfazeja e está ligada à transparência de toda e qualquer atividade do Estado. A explicação para decisões nesse sentido só pode estar na tentativa de alguém proteger alguém. Eu acredito piamente nisso.
OESP - A Lei da Ficha Limpa, que prevê a inelegibilidade de políticos antes da condenação em última instância, é uma reação à morosidade da Justiça?
E.C. - Sim. E parece que nós colocamos também a Ficha Limpa na morosidade da Justiça. É como se fosse uma teia de aranha. Até esse projeto, que é sim uma reação à morosidade da Justiça, ficou parado nas teias do Judiciário. A prova maior da disfunção do Judiciário está na tramitação desse projeto no Judiciário.
Leia a íntegra da matéria diretamente no saite do jornal O Estado de S. Paulo.
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