Juiz Marcelo Malizia Cabral: Os sistemas alternativos
de resolução de conflitos devem ser encarados
como mecanismos complementares e ampliativos da Justiça
O Juiz de Direito Marcelo Malizia Cabral atua na 1ª Vara Cível de Pelotas. A presente entrevista foi feita com base em sua monografia de conclusão do curso de Especialização em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) intitulada “Concretização do Direito Humano de Acesso à Justiça: Imperativo Ético do Estado Democrático de Direito”, publicada em maio de 2009, na Coleção Administração Judiciária.
Concretamente, é possível garantir o acesso à Justiça a todos os cidadãos brasileiros? O Judiciário do País está preparado/estruturado para atender a uma demanda de tal monta?
O acesso à justiça é garantido apenas formalmente aos indivíduos atualmente. Há uma legião de pessoas que não possuem a garantia material de acesso à justiça. Nesse contingente estão as pessoas que possuem déficit de informação, ou seja, não conhecem seus direitos e por esse motivo não buscam o sistema de justiça. Há também quem perceba a lesão a um direito seu e não possua condições financeiras de suportar o litígio.
Mesmo que existam serviços gratuitos de assistência jurídica – em regra insuficientes –, o tempo de espera pela solução de um conflito possui um custo financeiro e as pessoas, em especial aquelas em situação de hipossuficiência, não encontram condições de com ele arcar. Fatores sociais, culturais e legais também excluem as pessoas do sistema de justiça. É o que Boaventura de Sousa Santos denomina de “sociologia das ausências”. Deste modo, esses indivíduos fazem justiça pelas próprias mãos – o que, em regra, gera situações de violência – ou abdicam de seus direitos.
A garantia de acesso à justiça a todos os cidadãos brasileiros é possível e depende da concepção e da execução de uma política pública de acesso à justiça que inclua informação, mecanismos alternativos de resolução de conflitos e os tribunais.
Qual o papel dos mecanismos consensuais de resolução de conflitos?
Os sistemas alternativos de resolução de conflitos devem ser encarados não como forma de substituição ou de subestimação da jurisdição, mas como mecanismos complementares e ampliativos do acesso à justiça que podem auxiliar, cada vez mais, a produzir espaços em que a gestão social de interesses antagônicos se faça com base no direito, no respeito aos direitos fundamentais, desvalorizando-se, assim, as formas violentas e opressivas de resolução de disputas, sempre tão presentes na sociedade brasileira. Aliás, as experiências de resolução de conflitos por meios alternativos à jurisdição no Brasil, ainda que incipientes, têm demonstrado o efeito de ampliação do acesso à justiça, especialmente para comunidades em situação de hipossuficiência ou vulnerabilidade.
A esse respeito, diagnóstico realizado pelo Ministério da Justiça apurou que 80% dos programas de resolução alternativa de conflitos no Brasil são utilizados majoritariamente por classes populares, sobretudo por mulheres. Deste modo, a crise verificada no sistema de realização de justiça impõe a ultimação de esforços à sua superação com a construção de uma nova política pública de acesso à justiça, onde se edifique um novo paradigma de política pública de justiça que inclua os tribunais e os mecanismos alternativos de resolução de litígios.
Considerando-se o acesso à Justiça como direito social, faz-se necessário o desenvolvimento de políticas públicas e de ações afirmativas de parte do Estado e da Sociedade para que se garanta materialmente esse direito?
O novo conceito de acesso à justiça impõe a atuação positiva do poder público e da sociedade para a oferta de um sistema eficaz de resolução de conflitos à população. Essa nova concepção do sistema de justiça desperta a percepção da existência de dimensões outras relativamente a esse direito para além de sua tradicional caracterização como direito de defesa. Deste modo, o novo conceito de acesso à justiça coloca em evidência a dimensão positiva dos direitos fundamentais como direitos a prestações, tais como a obrigação de o Estado disponibilizar recursos e organizar procedimentos, organizar serviço de assistência jurídica aos necessitados, bem como um sistema amplo de resolução alternativa de litígios e, por fim, a tutela jurisdicional por intermédio dos tribunais, obrigações que se submetem ao regime próprio do direito prestacional. Há necessidade de se caminhar na busca da democratização, da desburocratização, da informalização, da celeridade e da consensualização do acesso à justiça, o que somente se alcançará com o desenvolvimento de políticas públicas e ações afirmativas nesse sentido.
Quais os principais obstáculos à concretização desse direito?
Os obstáculos ao acesso à justiça são de natureza econômica, social, cultural e legal. Decorrem de diversos fatores, tais como a desinformação sobre o conteúdo dos direitos e dos mecanismos de resolução de conflitos existentes, o elevado valor das custas processuais, a insuficiência dos serviços ofertados pelas Defensorias Públicas, a impossibilidade econômica e social de se suportar a longa tramitação dos processos até a realização do direito, a distância física, social e cultural das comunidades com os locais de prestação de justiça e com as pessoas que nele trabalham, a falta de compreensão das formalidades e da linguagem próprias do sistema de justiça formal, assim como de sua morosidade, dentre outros.
No seu entendimento, que ações podem ser desenvolvidas para que se garanta a concretização do direito humano de acesso à Justiça?
A construção de um novo conceito de acesso à justiça e a consequente concretização do direito humano de acesso à justiça principiam por privilegiar a dimensão prestacional deste direito fundamental, reclamando a construção e a execução de uma política pública nacional de acesso à justiça que priorize os meios alternativos de resolução de conflitos. A criação de um sistema descentralizado, acessível, informal e desburocratizado de resolução de conflitos, com recurso a meios alternativos e complementares à jurisdição, focado na conciliação, na mediação e na arbitragem, seja por meio de serviços ofertados exclusivamente pelo Estado, seja com recurso a ações de iniciativa da sociedade civil, deve orientar uma nova concepção de acesso à justiça que inclua, ainda, a oferta de informação à população sobre o conteúdo e a extensão de seus direitos e deveres. A cultura da utilização do Poder Judiciário como instrumento de retaguarda para a resolução de conflitos também há de ser desenvolvida, o que reclama a desjudicialização de procedimentos, o desestímulo aos litigantes habituais no acesso direto à jurisdição e a adoção de um sistema preferentemente não adversarial de resolução de conflitos, com a indução ou mesmo a imposição de sua utilização em alguns casos, medidas que não afrontam o direito de acesso aos tribunais, concebidos, então, como ultima ratio do sistema de oferta de justiça e de pacificação social.
No que diz respeito aos mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, que tipos de ações o senhor considera indicadas para estimular o uso dessas ferramentas?
Os mecanismos alternativos de resolução de conflitos devem ser priorizados desde a formação dos bachareis em direito, mediante a valorização da justiça de proximidade e da autocomposição. As novas profissões jurídicas também devem ser estimuladas e destacadas de modo a viabilizar o incremento de práticas de conciliação, mediação e arbitragem. Além da oferta de serviços públicos e privados de conciliação, mediação e arbitragem como filtros ao recurso à jurisdição, com utilização facultativa, pode-se pensar também no induzimento ou mesmo na obrigatoriedade da utilização desses mecanismos nalgumas situações, como se tem realizado, exitosamente, em diversos países.
Qual a relação entre acesso efetivo à Justiça e celeridade na solução dos conflitos?
A questão apresenta diversas facetas. Primeiro deve-se estabelecer que acesso à justiça e acesso ao Judiciário são realidades diversas. Assim, um sistema de acesso à justiça satisfatório, com mecanismos alternativos e complementares à jurisdição de resolução de conflitos, comunitários ou estatais, pode reduzir sensivelmente a demanda no Poder Judiciário, o que haverá de aumentar a celeridade na tramitação dos processos. A manter-se a concepção atual, que iguala acesso à justiça e acesso ao Poder Judiciário, poder-se-ia concluir que o aumento do acesso, ou seja, do ingresso, reduziria a celeridade. Também não se pode deixar de referir que a morosidade pode desestimular ou, ao contrário, fomentar o acesso ao Judiciário, dependendo dos interesses de quem o procura e, ainda, que pode incentivar as pessoas à procura de soluções violentas aos conflitos ou à adbicação de direitos.
O crescimento da procura pelo Judiciário é sinônimo de ampliação do acesso à Justiça? Qual é, no seu entendimento, a relação entre aumento da demanda pelo Judiciário e desigualdade social no Brasil?
A demanda do sistema de justiça brasileiro tem se apresentado significativa e crescente, realidade que não significa, necessariamente, possuam os indivíduos índice satisfatório de facilidade no acesso à justiça, estejam a levar suas pretensões ao sistema de justiça adequadamente ou mesmo que confiem e estejam satisfeitos com a eficiência do sistema de resolução de conflitos. Ao contrário, pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas neste ano de 2010 demonstrou que 58,3% dos entrevistados acreditam que o acesso à justiça no Brasil é inexistente ou difícil, 78,1% que o custo do Poder Judiciário é elevado, 59,1% que o Poder Judiciário não é competente ou tem pouca competência para solucionar conflitos, 92,6% que o Judiciário resolve os conflitos de forma lenta ou muito lenta, revelando-se o índice de confiança no sistema de justiça em 5,9 pontos.
Ao lado dessa clara percepção da população de um acesso à justiça truncado, sua seletividade resultou desvendada por pesquisa coordenada pela socióloga Maria Tereza Sadek, demonstrando a relação direta existente entre o índice de desenvolvimento humano (IDH) dos brasileiros – que considera a renda, o nível de educação e a expectativa de vida dos indivíduos em cada região do país – e o número de processos iniciados no sistema de justiça. Após afirmar que o número de processos iniciados cresce e diminui na mesma proporção do índice de desenvolvimento humano das populações, circunstância que denuncia uma profunda desigualdade no acesso à justiça, a pesquisadora conclui que “qualquer proposta de reforma do Judiciário deve levar em conta que temos hoje uma Justiça muito receptiva a um certo tipo de demandas, mas pouco atenta aos pleitos da cidadania”.
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