domingo, 20 de março de 2011

Justiça ainda não se definiu sobre abandono afetivo

Texto publicado sábado, dia 19 de março de 2011 no Consultor Jurídico

Por Marília Scriboni

“Não há como obrigar uma pessoa a amar outra”. Mais do que uma dura verdade, a frase é escrita reiteradas vezes em sentenças que tratam de um assunto que faz parte da vida de muitas crianças e adolescentes: o abandono afetivo. Sob esse argumento, juízes ao redor do Brasil vêm se posicionado ora contra, ora a favor da indenização nesses casos. E foram justamente essas palavras que a juíza Laura de Mattos Almeida, da 22ª Vara Cível de São Paulo, empregou ao negar uma indenização a uma filha que foi gerada fora do casamento.

Aos 37 anos, a recepcionista desempregada conta que, filha de pai “riquíssimo”, atravessou uma vida de privações. Enquanto seus irmãos viajavam à Europa, ela começou a trabalhar aos 14 anos para engrossar as finanças da casa. Na tentativa de reaver os prejuízos financeiros, psíquicos e morais causados pela ausência do pai, a mulher ajuizou um pedido de danos morais no valor de R$ 6 milhões. Mas não obteve sucesso.

A tese do abandono afetivo traz conseqüências psicológicas negativas na formação de uma criança, lembra a advogada Iamara Garzone, do Mesquita Pereira, Marcelino, Almeida, Esteves Advogados. A indenização, nesses casos, vai no “sentido de punir o causador do dano sofrido, indenizando de forma material a lesão psíquica”.

Na petição inicial, o advogado de defesa da filha, Francisco Angelo Carbone Sobrinho, escreveu que “o pai [aos 94 anos] tem três enfermeiros, dois seguranças, duas empregadas, um motorista e o médico da família cobra diariamente R$ 3 mil para comparecer, consultar e aplicar-lhe injeções e medicamentos. A filha amarga suas moléstias no SUS”.

Embora a existência de pais que não acompanham o crescimento dos filhos seja coisa antiga, a tese do abandono afetivo é relativamente nova, como conta Garzone: “E tem tomado mais corpo atualmente, por conta da maior facilitação em razão das entidades oficiais e particulares que se dedicam à proteção da criança e do adolescente”.

Os tribunais do país vêm se comportando de forma diversificada. Por sim, por não, um elemento é raramente descartado: a efetiva lesão. Apesar disso, os tribunais – assim como a juíza que resolveu o caso da filha de 37 anos – acreditam que, dada a ausência da prática do ato ilícito, não há como exigir reparação pecuniária.

É o que comenta Gladys Maluf Chamma, especialista em Direito de Família. “Qualquer ato lesivo a outrem é passível de indenização. De qualquer forma nossos tribunais relutam em aceitar esse tipo de indenização com o argumento de que indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito”, conta.

Os advogados do senhor de 94 anos, por sua vez, alegaram outro aspecto da lei: se o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil já prevêem como punição a perda do poder familiar, não haveria porque punir, de mais uma forma, o pai. Segundo o o advogado Cláudio Antonio Mesquita Pereira, a juíza lembrou na decisão que “a perda do poder familiar é a mais grave pena civil a ser imputada a um pai. Por isso, cai por terra a principal justificativa dos defensores da indenização pelo abandono afetivo”.

Ainda na decisão, a juíza escreveu que “não é possível quantificar o amor para efeito de conceder a indenização segundo a gradação de cada ausência”. Em sentença da 1ª Vara Cível de São Gonçalo (RJ), a juíza Simone Ramalho Novaes condenou o pai a indenizar um adolescente de 13 anos por falta de carinho e amor. “Se o pai não tem culpa por não amar o filho, a tem por negligenciá-lo. O pai deve arcar com a responsabilidade de tê-lo abandonado, por não ter cumprido com o seu dever de assistência moral, por não ter convivido com o filho, por não tê-lo educado, enfim, todos esses direitos impostos pela lei”.

No último 3 de março, chegou à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado o Projeto de Lei 700, 2007, que pretende caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal. “A lei visa prevenir casos intoleráveis de negligência dos pais contra os filhos”, anota o autor do projeto, senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). A matéria aguarda julgamento e está sob a relatoria do senador Demóstenes Torres (DEM-GO).

Crivella justifica sua ideia indagando: “Pode o pai ausente – ou a mãe omissa – atender aos desejos de proximidade, de segurança e de agregação familiar reclamados pelos jovens no momento mais delicado de sua formação?”. Ele cita a Declaração dos Direitos da Criança, de 1990. O sexto princípio determina que “para o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão. Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabilidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto e de segurança moral”.

O advogado Luiz Kignel, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família, lembrando a complexidade das relações familiares, diz que “em Direito de Família, dois e dois nunca são quatro. Melhor do que indenizar, seria se pai e filho se relacionassem”.

Marília Scriboni é repórter da revista Consultor Jurídico.

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