segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Com TPI, países preferem o Direito à força


foto de Pedro Capão. In:http://br.olhares.com/

Texto publicado domingo, dia 22 de agosto de 2010


Por Aline Pinheiro

A juíza criminalista Sylvia Steiner encontrou na pequena cidade de Haia, na Holanda, a oportunidade de aplicar aquilo que havia estudado e se especializado, mas jamais praticado: o Direito Internacional. Foi no Tribunal Penal Internacional, onde está há mais de sete anos, que ela pôde conciliar a experiência como juíza criminal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, com os estudos na USP sobre Direito Internacional, a disciplina de seu mestrado. Nesta sétima e última reportagem da série Capital Jurídica, que a Consultor Jurídico publica esta semana, Sylvia abre as portas do seu gabinete no TPI e conta um pouco o que pensa sobre Justiça internacional.

O TPI, única corte criminal internacional permanente, está prestes a dar a sua primeira decisão. Em setembro, um dos acusados por crimes contra a humanidade no Congo vai saber qual é o seu destino. Sylvia, que está no tribunal desde que este abriu as suas portas, acredita que o início das sentenças é o passo que falta para o tribunal cair nas graças da população. “A parte que antecede a sentença é desconhecida e dá a impressão de que não estamos fazendo nada”, diz.

Mesmo assim, a corte vem, ao longo dos anos, ganhando aceitação dentro dos países. Sylvia, que acompanhou a gestação e o nascimento do TPI, comemora. Ela se envolveu com o tribunal logo após a aprovação do Estatuto de Roma, que criou a corte. Participou das comissões para definir regras processuais, antes de ser eleita juíza pelos Estados-parte.

O tribunal sofre por não ter uma polícia própria e depender única e exclusivamente da cooperação dos governos nacionais para funcionar. Sylvia, no entanto, não acha que isso seja negativo. Ela defende a diplomacia, e não o uso da força. “Eu acredito muito mais em cooperação entre os países, que é a maneira de fortalecer o Estado de Direito dentro do cenário internacional. É preciso convencer os países que nenhum é uma ilha. Essa interação, dirigida por normas do Direito Internacional, é o caminho para o mundo ideal.”

Para a juíza, esses anos no tribunal estão sendo fonte de amadurecimento, tanto profissional como pessoal – já que lidar com a mistura de culturas no ambiente de trabalho não é das tarefas mais simples. Os mandatos dos juízes no TPI duram nove anos e não são renováveis. O de Sylvia termina no início de 2012. Ela espera ansiosa pela data quando, com o gosto na boca de missão cumprida, volta para o Brasil para exercer duas funções importantes: a de avó e algum papel ligado ao sistema interamericano de Direitos Humanos.

Leia a entrevista.

ConJur – Qual a importância do Tribunal Penal Internacional?
Sylvia Steiner — É a única corte penal internacional permanente. A sua importância já começa nesse fato. É resultado de um progresso do Direito Penal Internacional, que passou pelos tribunais ad hoc, como o de Nuremberg. Se não fosse criada uma corte permanente, esse progresso não teria sentido. O TPI é resultado da evolução histórica. Ele também é importante do ponto de vista emblemático, para reforçar a ideia de que a comunidade internacional não tolera a impunidade. Um tribunal forte, embora não resolva o problema do crime, manda a mensagem de que os criminosos vão ser punidos. O TPI é uma corte independente que representa a comunidade internacional. Os juízes são eleitos de forma democrática e não têm qualquer obrigação para com seus países de origem. Não há reeleição justamente para que nenhum julgador saia pedindo votos. É uma corte imparcial e independente.

ConJur — Como é definida a competência do TPI? Ele não atropela o Judiciário do país do acusado?
Sylvia Steiner — Não. O sistema do TPI é o chamado sistema complementar. Ele só pode atuar quando o sistema nacional não atua, ou porque não quer ou porque não pode. Isso acontece em países que estão no meio de conflito armado e com instituições completamente destruídas. O TPI também só tem jurisdição sobre cidadãos que nasceram ou que cometerem crimes em Estados que ratificaram o tratado que criou a corte. A jurisdição da corte não é imposta.

ConJur — O Sudão não assinou o Estatuto de Roma, que criou a corte, mas mesmo assim o TPI está julgando sudaneses, entre eles o presidente do país. Por quê?
Sylvia Steiner — A situação do Sudão se encaixa na única exceção que permite ao tribunal julgar cidadãos de países que não fazem parte da corte. Isso é permitido quando é o Conselho de Segurança da ONU que envia o caso para o TPI julgar. Em vez de criar tribunal ad hoc para o caso do Sudão, o Conselho de Segurança preferiu mandar para o TPI. O país se encaixa na única exceção onde o princípio da nacionalidade ou da territorialidade não importa. Vale só a limitação da irretroatividade, que não muda. A corte não julga crimes cometidos antes de ela ser criada. Ou seja, nada antes de 1º de julho de 2002, quando o Estatuto de Roma entrou em vigor.

ConJur – O TPI é uma corte independente da ONU. A corte não teria mais força se fosse respaldada pelas Nações Unidas?
Sylvia Steiner — O tribunal tem com a ONU um acordo de cooperação operacional, de troca de informações, mas mantém a sua independência. Não participei da conferência de Roma, quando foi criado o TPI, mas lá se chegou à conclusão de que o tribunal tinha de ser separado da ONU. Por ser uma corte penal, não pode ter nenhum tipo de vínculo para manter a sua imparcialidade. Em termos financeiros, são os Estados-parte que mantêm o TPI.

ConJur — O tribunal não tem uma polícia própria e depende da cooperação dos países para aplicar a Justiça. O que fazer, então, quando um país não quer colaborar, como o Sudão?
Sylvia Steiner — No caso do Sudão, comunicamos a falta de cooperação ao Conselho de Segurança da ONU. Não há muito mais o que fazer. Já os países que ratificaram o tratado assumiram obrigações para cumprir. Todo mundo ratifica um tratado com boa-fé. Eles se comprometeram a cooperar com o tribunal sempre que necessário.

ConJur — O TPI pediu inclusive para o Brasil prender Omar Al Bashir, presidente do Sudão, caso ele pise em solo brasileiro. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, ainda vai analisar se existe essa possibilidade e, na ocasião, discutirá a incorporação do Estatuto de Roma pelo Brasil. Como a senhora vê esse julgamento?
Sylvia Steiner — Eu sou internacionalista de formação, apesar de ser também penalista, e acho que, a partir do momento da ratificação, não existe mais discussão. O ato de ratificação é um ato típico de dever de soberania. A partir do momento em que o Estado, no exercício da sua soberania, ratifica um tratado e se obriga a cooperar, acabou toda a discussão sobre se isso ofende ou não a soberania. É cumprir com uma obrigação assumida em decorrência de um ato típico de soberania, que é a ratificação. O Brasil é parte do Estatuto de Roma. Então, ele tem que cooperar com o tribunal.

ConJur – A corte internacional, criada em 2002, ainda não tem nenhum caso concluído. Quando sai a primeira decisão condenando ou absolvendo alguém?
Sylvia Steiner — O primeiro caso deve terminar provavelmente em setembro, sobre um acusado de utilizar crianças como soldados para combater no Congo. Esse caso chegou ao tribunal em 2006.

ConJur — Qual a pena máxima que o TPI pode aplicar?
Sylvia Steiner — A pena máxima é de 30 anos, mas em alguns casos excepcionais, quando há uma soma de circunstâncias agravantes, pode ser aplicada a prisão perpétua. A corte não julga ninguém à revelia, mas os crimes aqui não prescrevem.

ConJur – O TPI já tem jurisprudência própria?
Sylvia Steiner — É um tribunal recém-nascido ainda, que está aos poucos formando a sua própria jurisprudência. Quando possível, usamos jurisprudência dos tribunais ad hoc [como de Ruanda e da extinta Iugoslávia]. Mas a intenção do tribunal é criar uma interpretação própria, a partir das visões diferentes que cada juiz traz do seu país. É importante que cada julgador tenha o compromisso de ser universalista. Eu não posso, por exemplo, julgar como se eu estivesse num tribunal brasileiro. Aqui, nós temos uma câmara para uniformizar entendimentos. Aos poucos, vamos definindo questões pequenas, mas que fazem toda a diferença nos processos. O primeiro caso que começamos a julgar está sendo o mais difícil porque tudo é novo. Até a decisão, que sai agora em setembro, são quatro anos. O segundo, já é um pouco mais fácil e devemos demorar três anos. Ou seja, o tempo dos processos também vai caindo.

ConJur — Onde são cumpridas as penas dos réus condenados pelo TPI?
Sylvia Steiner — O tribunal usa como prisão provisória o presídio que está aqui em Haia. Fora isso, faz convênios com os países para mandar os condenados para os presídios de lá. Estados, como Espanha e França, já aceitaram receber os condenados pelos TPI.

ConJur — Já se discutiu o que fazer com um condenado depois que ele cumpre a pena? Ele volta para o seu país?
Sylvia Steiner — Não há nada previsto no Estatuto de Roma, mas isso deve ser uma preocupação do tribunal.

ConJur — O presidente do Iraque Sadam Hussein não deveria ter sido julgado pelo TPI?
Sylvia Steiner — Não. O Iraque nunca foi signatário do Estatuto de Roma. Além disso, a corte não pode julgar crimes que aconteceram antes da sua criação.

ConJur — O tribunal hoje tem quatro casos nas prateleiras, todos de países africanos. Por quê?
Sylvia Steiner — Não foi o tribunal que escolheu. Desses, três foram enviados pelos próprios governos: Uganda, Congo e a República Centro Africana. O do Sudão foi mandado pelo Conselho de Segurança da ONU. A primeira vez que o promotor do tribunal resolveu, ele mesmo, iniciar uma investigação foi no final do segundo semestre, no Quênia. Quando o promotor decide por conta própria investigar, ele tem que pedir autorização para uma das câmaras preliminares, Nesse caso, a autorização foi dada. O que eu vejo é que a aceitação da corte está crescendo a cada dia, mas, em contrapartida, cresce também a resistência a ela. Quando o tribunal mandou prender o presidente do Sudão, chegou-se a exigir que a União Africana fizesse uma espécie de ultimato para que o tribunal parasse de prestar atenção só nos problemas da África. Mas isso faz parte só do discurso político porque, como eu falei, foram os países africanos que mandaram os casos para o tribunal julgar.

ConJur — Em um mundo ideal, onde todos os países fossem democráticos e tivessem um Judiciário forte, haveria motivo para existir o TPI?
Sylvia Steiner — Talvez não, mas isso é mesmo um projeto de mundo ideal. Não é para as próximas gerações. Muitos países ainda, inclusive o Brasil, não são capazes de julgar todos os crimes que o TPI julga hoje. Crimes de guerra, por exemplo, não estão previstos na legislação brasileira. Se acontecerem, o país não pode julgar, tem de mandar para cá. A existência do TPI obriga os países, de certa maneira, a aprimorar a legislação penal. Isso fortalece os Estados e é o caminho para que um dia o TPI não seja mais necessário.

ConJur — O que significa o fato de potências como os Estados Unidos, China e Rússia não serem Estados-membro do TPI?
Sylvia Steiner — Como um tribunal de caráter universal, o ideal é que todos os países adiram, a começar pelas grandes potências. Mas eu diria que não enfraquece porque o TPI começou com uma legitimidade muito grande, sustentado por todos os países da América Latina, da Europa, Japão e Canadá. O que eu espero é que os países que ainda não aderiram ao tribunal um dia superem suas próprias dificuldades e venham para cá. Às vezes, o país precisa mudar a legislação interna para isso ou até mesmo compreender a função do TPI. O caso dos Estados Unidos é mais complicado porque é uma questão cultural que não pode ser mudada de um dia para outro. Vários tratados não foram assinados por eles. A corte precisa mostrar que as suas decisões são imparciais e jurídicas, e não políticas, e, assim, ganhar credibilidade. Eu não duvido que em um futuro de longo prazo todos os países sejam parte do TPI.

ConJur — O Estatuto de Roma, que criou o TPI, passou pela sua primeira revisão agora em junho. A impressão que ficou do encontro é que a corte está se firmando aos poucos, mas ainda é bastante desconhecida.
Sylvia Steiner — O Estatuto de Roma foi assinado na conferência de Roma em 1998 e entrou em vigor em 2002. É um tempo recorde. Outros tratados demoraram até 20 anos para passar a valer. O do TPI, quatro anos depois de assinado, já tinha 60 ratificações. Hoje, são 111 países. Quer dizer, em oito anos, mais do que dobrou o número de ratificações. A corte está se firmando sim e isso vai depender muito de quando começarem a sair as primeiras decisões. O que as pessoas querem ver é o resultado do julgamento. A parte que antecede a sentença é desconhecida e dá a impressão de que não estamos fazendo nada. Mas não é nada disso. Estamos trabalhando no limite das nossas capacidades já.

ConJur – É possível um Direito Internacional forte já que, diferente do Direito nacional, não tem a instituição Estado por trás sustentado o Judiciário, até mesmo com o uso da força?
Sylvia Steiner — Apesar de todas as falhas e da necessidade de mudança, já que o mundo não é mais o mesmo do pós-guerra, o sistema das Nações Unidas é um órgão de supervisão do comportamento dos Estados diante das regras de Direito Internacional. Hoje, o Direito Internacional está começando a ser levado mais a sério. Isso pode ser claramente notado dentro das universidades. Quando eu estudei, só se discutia Direito Internacional privado, isso é, questões ligadas a nacionalidade, herança, disputa de guarda de criança e casamento. Hoje, já se discute no Direito Internacional questões ligadas ao meio ambiente, à proteção de patrimônio histórico e cultural e agora crimes internacionais. O Direito Internacional na área penal é muito recente e ainda está se fortalecendo. Sobre o uso da força, eu não sou especialista, mas sinceramente não sei se dá para se imaginar uma comunidade internacional que seja única e exclusivamente baseada pelo uso da força.

ConJur — Mas, no caso do TPI, uma polícia própria, que pudesse usar a força, não tornaria a Justiça mais eficaz?
Sylvia Steiner — Não sei. Eu acredito muito mais em cooperação internacional, que é a maneira de fortalecer o Estado de Direito dentro do cenário internacional. É preciso convencer os países que nenhum mais é uma ilha. Essa interação, dirigida por normas do Direito Internacional, é o caminho para o mundo ideal. Às vezes, no entanto, o uso da força pode ser necessário. Mas, em relação ao TPI, por enquanto, eu prefiro apostar no sistema de cooperação internacional.

ConJur – Um dos objetivos da conferência de revisão do Estatuto de Roma era definir o crime de agressão para que o TPI pudesse começar a julgar acusados desse crime. A conferência terminou com uma pré-proposta, mas ainda sem alterações no estatuto. O que é o crime de agressão? Qual a dificuldade de condenar alguém por ele?
Sylvia Steiner — É mais ou menos responsabilizar criminalmente aquele que sem motivo justo mandou o seu exército atacar outro país. Normalmente, o acusado por esse crime seria o presidente do país, mas pode ser também um general ou ministro do exército. A conferência de revisão do estatuto conseguiu chegar à definição do que é o crime, o que já é um avanço muito grande, mas o problema procedimental persiste. Pela carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança é o órgão competente para declarar se houve uma situação de agressão – não o crime, porque o Conselho não fala em crime. A problemática é definir a interação entre o promotor do TPI para investigar esses casos e a atuação do Conselho de Segurança. O promotor é totalmente independente? Mas e se o Conselho diz que não houve crime? E se cada um enxerga de um jeito? Esse é o ponto delicado. É uma discussão política, mas enquanto isso não for definido, não podemos julgar ninguém pelo crime de agressão.

ConJur – O TPI mantém uma lista de advogados credenciados para atuar na corte. O réu não pode escolher um advogado que não esteja nessa lista?
Sylvia Steiner — Pode, desde que ele tenha os requisitos necessários para atuar no tribunal: 10 anos de experiência como advogado na área criminal, não ter nenhum procedimento disciplinar ou criminal contra ele e ser fluente em inglês ou francês, que são as duas línguas de trabalho do TPI. As línguas oficiais são as mesmas seis da ONU: inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês. As principais decisões são traduzidas para todas elas.

ConJur – A corte julga réu de diferentes nacionalidades e que falam diferentes línguas. Isso é um problema na hora dos julgamentos?
Sylvia Steiner — São dificuldades que o TPI tem de enfrentar. Os julgamentos acontecem sempre em inglês, francês e na língua do réu. Os documentos do processo também são traduzidos para a língua do acusado, quando dá. Temos casos de réu aqui que fala um dialeto basicamente oral, ou seja, não há escrita. A barreira da língua torna tudo mais lento. Já tivemos de sair correndo atrás de alguém que pudesse traduzir dialetos e, em alguns, só encontramos tradutor direto do árabe. Então, tudo fica mais devagar. O juiz lê algo, que é traduzido simultaneamente para o árabe e só depois para o dialeto do acusado. Mantemos tradutores de altíssimo nível para garantir que pouco se perca nessa tradução.

ConJur – Qual a preocupação do TPI com as vítimas e as testemunhas dos processos?
Sylvia Steiner — Testemunhas que correm risco de morte podem requerer medida protetiva. As vítimas têm a proteção do anonimato. Junto com a sentença condenatória, vem uma sentença de reparação à vítima. Se o acusado tem bens próprios que foram confiscados, isso é usado para indenizar a vítima. Se não tem, o tribunal tem um fundo de onde saem as indenizações.

Aline Pinheiro é correspondente da revista Consultor Jurídico na Europa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário